quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Sabor das Coisas & Outros Poemas * Wanda Cunha - MA/Brasil

O Sabor Das Cores e Outros Poemas
Wanda Cunha - MA/Brasil
*
  1.  O SABOR DAS CORES

Eu me vejo descalça mastigando as cores 
Dentro de  retângulo, losango e círculo.
Tive que engolir o verde com gosto de Bragança 
E, depois,  ruminei o mesmo verde com o sabor das florestas, 
Das  matas que os próprios brasileiros matam, em conluio com estrangeiros. 

Estava rançosa a cor amarela, 
Com o ressaibo da familia Habsburgo, de dona Leopoldina.
E eu me iludi que éramos ricos e que eu degustava  o ouro das nossas riquezas.

Tudo são pedregulhos de Pedro.
Tudo são  sensações dos  reféns ideológicos, nos quais nos transformaram
Refeições coloniais coloridas de opressão.

O Azul do céu  e dos rios, bebi-o de um só golpe 
Porque eram só rios de lágrimas
E o branco...  Dizem que traria a paz. Trairia!....
Era o luto da luta das classes oprimidas.

E não me Conte que há Ordem e Progresso!...
Ou melhor, Conte! Conte,  confesse que não há ordem
Nem  há progresso!...

E a bandeira resiste às cores estampadas...
Enquanto eu me vejo descalça mastigando as cores
Que viram dores, dissabores.

Cacos de luz entram nos meus pés e no  meu País.
E o sangue escorre pela  língua
Com o sabor agridoce de poesia.

  1. FECUNDAÇÃO

Meu óvulo marcou um encontro
Com um espermatozoide
Às quatro horas da tarde,
Na esquina das minhas trompas.

Meu óvulo esperou um bom
Tempo por quem não veio...

Caiu em depressão 
E saiu perambulando em mim
Chocando-se com a solidão,
Em minha parede uterina.

E o assoalho inundou-se em sangue,
Como um absorvente 
comprado às pressas
Numa farmácia.
...Pareceu-me um suicídio!....

Meu óvulo marcou novo encontro
Com um novo espermatozoide
Às sete horas da noite,
Na esquina das minhas trompas.

Identificaram-se...
Foram morar no meu útero,
Tipo casinha feita a ovo
Que virou sobradinho feito a feto.

E eu sustentava aquela família
Por meio de um cordão umbilical
Que não levava a ela o preço da carne,
Nem da luz nem e nem...
Nove meses de espera
Dentro de um regime maternático.
Agora, numa dilatação de angústia,
Estou morrendo de dor:
Meu filho vai conhecer
O regime do país.


  1.  QUESTIONAMENTOS

Por que nasci Eva e  cresci Dalila
Por que sou Salomé e estou Madalena?
Tudo que me ensinaram foi ser a costela
De alguém semelhante a mim,
Mas com uma semelhança sem a nuança da Maria que assumi.
Por que retrato mais culpa que Adão?
Por que semeei mais perigo que Sansão?
Por que inspiro mais astúcia que João?
Por que só Cristo não me atirou a pedra que trazia na mão?
Ora! Eu não sei por que nasci costela
E, ao mesmo tempo, a escolhida a ser Maria.
Tudo isso, entretanto, não me vangloria
Que, sem Deus, certamente eu não seria
Todo este ser de glórias e inglórias
Que, diversas vezes, mudou com ironia
O percurso de inúmeras histórias.

  1. QUICÁ

Talvez eu me queixe de o nosso sonho estar preso.
Não há sonho que caiba na prisão.

Talvez eu precise apressar  minha aposentadoria.
Não há aposentadoria  que resista ao caixão.

Talvez eu deva renovar o título de eleitor.
Não há título  que se eternize pelo voto.

Talvez eu  busque um país  melhor.
Não há país sem luta de classes.

Talvez eu insista em pensar 
Que  a nossa causa um dia já deu certo.
Não há causa sem efeito. Tudo é feito de fim e começo.
Porque a hora de terminar é a mesma de começar...
Então, vamos à luta!

  1. FANTASMAGÓRICO

Gosto amargo  na boca da noite
Promessas acesas nas praças
Bandeiras abertas à espera de balas
Baladas se foram nas guitarras engatilhadas.
Tempo de bodes expiatórios
De lados, direito e esquerdo,
E a esperança  no centro das atenções.
Alguém morreu!
Dizem que foi um líder.
Cansei de lidar com os fantasmas  da Democracia.
Muita Hipocrisia! Muitos hipócritas.
Por isso vou de Hipócrates:
Para males extremos, remédios eficazes intensos.
Viva a Poesia!

  1. BRASIL, TRISTE SINA

Recordações  sobejam  meu passado,
Quando eu  não votei no imperador
Meu grito, na verdade, foi calado
Às margens do Ipiranga e do favor.

E o que farei no túnel da memória
De um povo que perdeu a identidade?
Em que livro ficou real História?
Desde Caminha que falta a verdade.

Não havia eleição nos tempos de inglória
Os marechais plantaram  ditadura
Civis colheram a corrupção

E a democracia, clamando vitória,
Levou o país a um mar de amargura
Roubado, rolando de mão em mão.

07 - ALITERAÇÃO

Eu quero dançar contigo dentro da poesia,
Como dança o povo dentro do Estado.

Eu quero rebolar contigo em cada rima
Como rebola o povo dentro do salário.

Eu escolho uma aliteração para nossa vida:

Filhos, felicidade, família, feijão, farinha...
Como o povo, em fé,
Faz folia, forra a fome com futebol e fantasia.

08 - PESCA(DOR)

A alma do mar é amarga do sal do sol.
E bate no cais como quem cai em lágrimas
Abarca o barco com um abraço de louco
E balbucia o beijo da brisa quando se recolhe.

A alma do mar é marcada pela calma dos anjos
Quando o vento vadio é quebrado pela vela
Mar misterioso no mistério de mim
A permitir a pororoca dos apuros perdidos.

Um rio e um mar, um riso amargo
Misturando ondas e correntezas
Certezas de idas e vindas em busco do porto
Nada de Porto. Nada a alma. Naufrágio.

Porta aberta para a morte
Se a sorte não se manifesta.
Festa de peixes, cardume, queixumes,
Tudo na mesma rede.

  1. DIREITOS DE QUEM TRABALHA (A)  DOR

Espero, mensalmente, meu salário,
Como espero o pôr do sol diário,
Melhores dias no meu bolso operário.

Igual ao meu vizinho que é bombeiro,
Apago o fogo das dores do ano inteiro
Só para salvar uma esperança pra janeiro.
Igual ao padeiro,  ponho a mão na massa,
Para dar comida aos meus herdeiros.

Igual ao pedreiro, vivo da olaria,
Levanto a parede para erigir o sonho,
Como se ele fosse minha moradia.
Alfaiate,  costuro a esperança,
Com a agulha da perseverança.

Igual ao sapateiro, colo a sola
Para atravessar, na caminhada,
As oito horas diárias de jornada.
Deixo o suor da testa nas calçadas
Nas horas semanais remuneradas

Mesmo aquele que é desempregado,
Merece um alegre domingo ensolarado 
Como o repouso semanal remunerado.
Por isso, quando não seguro o emprego,
Faço dessa mudança uma alavanca
Com meu  breve seguro-desemprego.

E para manter o compromisso
De nunca perder minha alegria
Eis como garanto meu sorriso:
Finjo que acredito no Fundo de Garantia
Do meu tempo de serviço.
Finjo que é bonança,  a aposentadoria

A Cidadã de 88 ainda diz
Que com meu salário dá pra eu ser feliz.
Talvez, porque sou trabalhador e, igual ao doutor,
Também dou  receitas pra acabar com a dor.
Afinal, sou artista, e igual ao dentista,
Obturo a cárie do sorriso equilibrista.

  1. INDI(G)ENTE)

Há (fe)ijão na pan(ela)
(Jo)ão co(meu) só a dor
Do p(rato) no qual se amargurou.

Toucinho se sente frito no caldeirão.
Arroz misturado com cebola,
Água e sal, lágrima nos olhos de ser bola
Que rola na face da al(face)
Que faltou na sala(da)
Casa de pobre,
De g(ente) como a gente
Que não tem o que comer

E que, por isso, come o ranço
Da espera ranco(rosa).
E que também por isso
Finge que é (São) João
E que o santo trouxe a comida típica pra mesa.

Comida é a família pela fome
Enquanto alguém come bem.

Há feijão na pan(ELA)
Chia a pressão!...
Chia!....
Pressão... Pan!!! Ela!....
Ela não resistiu e explodiu...
Ficou louca com tanta fartura de fome
Que come suas f(ilhas)
Arquipélagos à Mar (gem)
Do contin(ente), do contin(gente)...

Muita g(ente) sem d(ente) pra morder
...Gente!... Indigente... Gente da gente.
Frente a fr(ente) o são e o do(ente)
Aqu(ele) que tem e aquele que não tem
Gente e gente diverg(entes).
Dez iguais, mil desiguais.

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DADOS DA AUTORA


BIOBIBLIOGRAFIA

Wanda Cristina  da Cunha e Silva (WANDA CUNHA) nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 05 de junho de 1959. Filha do escritor e jornalista Carlos Cunha e da professora Plácida Jacimira Cabral da Cunha. Estreia na Literatura Maranhense aos 12 anos de idade, com uma peça teatral, em dois atos, publicada no Jornal Pequeno, intitulada  “Sociedade Moderna”. Em 1981 publica seu primeiro livro de poesia, intitulado “Uma Cédula de Amor No Meu Salário”. No mesmo ano, sob o pseudônimo de Marco Aurélio recebeu prêmio promovido pela Academia Maranhense de Letras sobre “A Vida e a obra de Coelho Neto”. Escreveu ainda “Engraxam-se sorrisos” – Crônicas – 1983; “Rede de Arame” – Poesias – 1986; “Geofagia ruminante no sótão da preamar” – Poema – 1989; “Flor de Marias No Buquê de Costelas” – Antologia poética – 1993. “Viagem às Ruas de São Luís” – Teatro -  2012 e “Parede tem Ouvido” – Conto infantil – 2016. Em 2017, foi classificada em primeiro lugar no Concurso Nacional Novos Poetas – Antologia Poética CNNP 2017 pela Editora Vivara. Por meio de classificação no concurso promovido pela Editora Zouk, Porto Alegre, em 2017, integra a antologia NOVAS CONTISTAS DA LITERATURA BRASILEIRA – 2018. Já conquistou diversos outros prêmios nas áreas de literatura e música. Wanda Cunha é escritora, radialista, cronista, jornalista, compositora, trovadora e professora. Formada em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão e em Comunicação Social (Jornalismo), pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-graduada em Língua Portuguesa e Comunicação e Reportagem. Pós-graduanda em Educação Musical e Ensino das Artes e em Teoria da Literatura e Produção de Texto.  Email: wanda_cunha@hotmail.com
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